Painel (Boletim 5)

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Painel

MORTE: DA DIFICULDADE À NECESSIDADE DE FALAR SOBRE ELA

“Morreu feito um passarinho”
E no meio da conversa ela dizia
– Ai Dra…Eu não tenho medo da morte não, mas ver alguém morrer do nosso lado é coisa ruim demais né. Ela gritava e gemia, e eu só pensava – A morte dói.
Pedro, meu marido, morreu feito um passarinho sabe?
– Como morre um passarinho Donana?
– Morre suave. Ele colocou a cabeça para trás, suspirou e morreu. Não sofreu nada nada…
Mas aqui do lado da senhorinha, eu comecei a chorar e me disseram para parar, que não estava acontecendo nada.
Poxa, eu não sou menina mais…eu sei da morte…pouco, mas sei que ela pega a gente.

Verdade seja dita! Donana sabia das coisas sim…a morte havia pego sua companheira de quarto e havia passado sua mão sedutora no rosto negro de Donana…cada angina era sentida como o toque da morte. E ela já tinha muito medo, porque imaginava que às vezes a morte era doída.
Pedro tivera sorte então. Aos olhos de Donana, ele era da família dos passarinhos e tivera a sorte de um último suspiro sem dor. Ela só queria morrer assim…passarinha. E o gemido da senhorinha lhe perturbou os sonhos por três noites seguidas.
Donana chorava e pedia em suas rezas que não tivesse mais dor, que seu coração fosse compensado por toda a vida sofrida educando 14 filhos. Não queria ainda ir para o lado de lá, não queria encontrar com Pedro passarinho. Ela queria mesmo era voar. E o fazia. Voava diariamente em seus pensamentos, em suas ilusões. Voava pra longe.
Pedia a Deus mais algum tempo e voltava para o chão.

Lisbella

Estamos iniciando 2017 e embora tantos caminhos novos abram espaço para falar sobre a morte, muitos só acontecem quando os envolvidos são tocados pela realidade e, com isso, submersos em seus efeitos. A dificuldade de falar sobre a morte é temática recorrente na área da psicologia da saúde e justificada por premissas importantes que são por nós, psicólogos, tão conhecidas, como: a dificuldade do indivíduo de aceitar a lidar com a própria morte, a angústia causada pelo sofrimento do outro, vulnerabilidade e impotência frente a falta de controle, dentre inúmeras outras.

Assim, dispositivos de saúde vão construindo seus cenários com a presença incontestável da morte e sua inegável dificuldade de narrá-la. Por outro lado, sob a ótica dos cuidados emocionais, observamos que por mais ameaçador que pareça para alguns profissionais, familiares e pacientes, manter a morte na roda dos discursos também pode ter um caráter libertador.

O adoecimento propicia um campo fértil para a temática da morte e possibilita que pacientes, familiares e profissionais falem dela de diversas formas, na medida em que entram em contato com as perdas inerentes à doença. Se falar de morte utilizando a palavra “morte” ainda exerce poder amedrontador para alguns, o indivíduo vai moldando sua linguagem para falar, convencido de que nada está dizendo. “Ele faleceu”, “ela foi a óbito”, “teve alta celestial”, “ele se foi”, “virou uma estrelinha”, entre outros, assumem muitas vezes o jeito possível para narrar a perda.

Ao se deparar com a finitude em grande parte do tempo, o profissional de saúde acaba desenvolvendo defesas psicológicas para tolerar o sofrimento que ela provoca. Os sentimentos de tristeza e frustração acabam se dissolvendo em novas ações para fazer o bem a outro paciente novamente. Não é permitido tempo para reflexão, e logo se convoca a intervir novamente e a dor é colocada no bolso para seguir em frente.

Portanto, no dia a dia é preciso cuidado para que as reações ao sofrimento pela perda não se escondam em lugares não reconhecidos, pois uma vez que a morte permeia o discurso, automaticamente estamos falando de luto. Este último, entendido como um processo natural de elaboração psíquica da perda deve ser vivido pelo indivíduo e não encarado como um obstáculo a ser vencido.

Desta forma, um espaço para falar e ouvir sobre a morte poderá atuar como um facilitador do processo de luto, que tende a acontecer de forma saudável na maioria das vezes e, com o reposicionamento afetivo, o indivíduo consegue investir em novos vínculos. Porém, em alguns casos, contam com desdobramentos menos favoráveis em sua elaboração, havendo uma exacerbação dos processos do luto normal, dando origem ao que denominamos luto complicado.

O morrer é o fechamento do ciclo da vida, no qual o profissional de saúde deve ter a oportunidade de expressar seus sentimentos diante dessa situação tão difícil, à qual dificilmente as pessoas estão preparadas. O desafio ético é considerar a questão da dignidade no adeus à vida para além da dimensão físico-biológica e para além do contexto médico-hospitalar, ampliando o horizonte, integrando a dimensão relacional. Existe muito que fazer no sentido de levar a sociedade a compreender que o morrer com dignidade é uma decorrência do viver dignamente e não meramente sobrevivência sofrida.

Sendo assim, cabe também ao psicólogo inaugurar e/ou fortalecer os espaços de fala e escuta sobre a morte nos dispositivos de saúde, não apenas com os pacientes, mas com seus familiares e com a equipe. Que Donana possa ser ouvida em seus pensamentos sobre a morte, seja sobre o medo de sentir dor ao morrer ou sobre a angústia de acompanhar solitária a morte de um acompanhante de quarto, sobre perder o cônjuge, sobre não querer se perder dos filhos e o desejo de viver, isto é, sobre o desejo da morte suave como a de seu Pedro passarinho. Se não é possível prever ou evitar o toque da morte, que a escuta atenta e ética possibilite ouvir silêncios e gritarias ecoados pelo fim. Talvez seja uma das formas de auxiliar o processo de “morrer feito passarinho”.

 

foto Juliana                                                               carolina seabra 2

Juliana dos Santos Batista                                                      Carolina Ribeiro Seabra
Membro do Conselho Fiscal | Gestão 2015-2017                 Diretora 2ª Secretária da SBPH (Gestão 2015-2017)
Psicóloga | CRP 06/89319                                                         Psicóloga | CRP 07/20340